Ter filhos pode ser ou não biologicamente ativo, rolar via adoção e acontecer de diversas outras formas. Ou não. Simples assim, fim.
“(...) a maternidade é um construto social e cultural que decide não só como criar os filhos, mas também quem é responsável pela criação de filhos” - Forna (1999, p. 32)
Fazendo uso de mais uma citação do livro “Saúde mental, gênero e dispositivos” da psicóloga e professora Valeska Zanello: “Para Basaglia (1983), foi sobre os caracteres naturais do corpo da mulher que se fabricou sua escravidão. Ou seja, segundo a autora, “doçura, feminilidade, propensão natural à dedicação e ao sacrifício, debilidade, necessidade de proteção e autotutela” (p. 14) foram características associadas culturalmente às mulheres pela identificação destas ao corpo e à capacidade de procriação. A subordinação das mulheres passaria assim mediante sua identificação total entre corpo (capacidade de procriar) e função social (maternar)” - o trecho está na página 143 e integra a abertura sobre o capítulo do Dispositivo Materno.
![](https://static.wixstatic.com/media/2cb111_a1043738301b478b949875815d75bcb0~mv2.jpg/v1/fill/w_935,h_937,al_c,q_85,enc_avif,quality_auto/2cb111_a1043738301b478b949875815d75bcb0~mv2.jpg)
Infinito Particular
Tive Clara aos 19, na virada do século. Engravidei no ano anterior, no final do terceiro colegial, prestando vestibular. Trago estigmas, sempre eles, culpas, arrependimentos - o bingo todo da maternagem padrão que corresponde ao meu percurso. Tenho lembranças que martelam rotineiramente em relação ao meu desempenho e comprometem outras tantas atividades. Haja terapia. E que a terapeuta tenha uma visão estudada e múltipla sobre os seres, requisito básico a essa altura. Ajuda e ampara o percurso da releitura.
Pronto. Caso tenha achado que encontraria por aqui uma ode celestial às mães, errou feio, errou rude. Neste espaço procuramos levantar questões que, antes de mais nada, têm a intenção de provocar perguntas, curiosidades. Não é só porque se trata da data que ocupa o segundo lugar em vendas no varejo - ficando atrás apenas do Natal - que iremos desfazer o combinado sobre esse baita tema. Indicamos, ainda, dar presentes ótimos como boa lingerie. Se dar, até, no caso. Enfim.
Para a geração de mulheres 40+, da qual faço parte, e também e ainda para tantas que vieram antes e inclusive depois, o vislumbre de escolher a maternidade é muito, muito, mas muito recentes. O sonho de ser mãe como promessa de vida completa na trajetória da mulher vitoriosa não vinha como opcional. Muito pelo contrário.
Aprendemos o cuidar como protagonismo essencial de nossa existência e casar (outro dispositivo, segundo Valeska) e ter filhos (este, e a lista de afazeres que o compõe) passa a ser meta. Pode ser que você encare como exagero. Eu mesma me pego dizendo mentalmente “descansa, miltante”. Linha após linha, relato após relato, escuta após escuta, ufa, além de bastante troca e vivência, entretanto, tornam mais evidente que sim, não sou eu, é o patriarcado - e ele impacta em diferentes e pertinentes nuances no nosso desenvolvimento que uma das sensações mais comuns quando nos entendemos parte disso é a vergonha.
Tá tudo bem. Ou não. Modo de falar. Verdade seja dita, os sensores que envolvem a maternidade são tão profundos e sensíveis ao mesmo tempo que chega a ser irritante comentar que tá tudo bem. Não tá. Fato é que a escassez de informação dá nisso e, ademais, vivemos sob o prisma da naturalização do maternar como colado intrínseca e intimamente à mulher desde o século XVIII, pelo menos na cultura ocidental.
No meu entorno, converso com mulheres que respiram aliviadas por de alguma forma terem "dado conta de não terem sido mães" mesmo mediante certa pressão social. "Percebi depois, mas o não desejo sempre esteve presente". Não é todo mundo que consegue enxergar. Verbalizar, então, imagina.
A vergonha, a gente sabe, é parte estrutural do processo necessário para mudar. E inserir. Como será o cuidado parental frente às tantas possibilidades que o universo contemporâneo oportuna?
O tal do dispositivo
“O amor materno, supostamente “espontâneo”, “diferente de todos os outros”, o “maior de todos”, foi inflacionado, produzido, e trouxe, como contrapartida, de um lado, o sofrimento de mulheres cuja relação com a maternidade não se traduziam nesses termos (ou a culpa, naquelas que sentiam não atingir esse ideal); e de outro lado, o looping effect dos “traumatizados” por não terem tido como cuidadora principal a mãe biológica, ou por ela não ser uma mãe “propaganda Doriana”. A psicologia prestou aqui sua grande contribuição como tecnologia de gênero (Zanello, 2016a).”
A autora narra, no adendo, o estudo de Edmonds (2012) que analisou metacriticamente “várias teorias clássicas do campo da psicopatologia/ saúde mental, sublinhando o quanto psicólogos e outros profissionais de ajuda participaram da construção da “culpa materna” - em meu breve resumo de entendimento, eram desconsiderados múltiplos fatores e particularidades ao avaliar crianças e o diagnóstico mais comum era “culpa da mãe”. Foram encontrados mais de 70 quadros que se associavam a esse contexto.
Este dispositivo materno representa a transformação de uma diferença física em desigualdade social no que diz respeito especialmente à naturalização da capacidade de cuidar nas mulheres e todo o enredo de tarefas de trabalho doméstico que “ser uma boa mulher” engloba. Quanto mais profundo o recorte, pior fica. “Se cuidar é natural, seremos demandadas (e nos exigiremos) a funcionar nesse dispositivo."
Não tem funcionado. Cambaleamos entre modelos e satisfações e ansiamos por desculpas de todos os lados. O que será integrar a mãe, de fato?
Item de fábrica?
Mesmo que tente resumir, tem tanta coisa somente neste capítulo! Indico a leitura completa que, além de mergulhar na temática central do post, apresenta alguns conceitos sobre mulheridades quase fundamentais para desenvolver senso crítico, nosso quase único aliado quando precisamos definir posturas, exigir direitos e deveres e nos posicionarmos quando é preciso um pouco mais de alma, ainda que o corpo peça um pouco mais de calma - eu sei, a vida não para.
Se a pergunta do subtítulo fosse feita direta e reta, no universo contemporâneo o ideal de resposta seria: claro que não e fim, mas na vida não é assim e o diálogo segue a ponto vez ou outra de nos sufocar. Tem gente que naturalmente não deseja ter filhos. Por nada não, particularmente, mas é quase sempre gente que precisou buscar e cavocar miliuma explicações e, adivinha, enorme parte das vezes encontra resposta onde, hein, sabidinha? Isso mesmo: na relação com a própria mãe. Como se essa fosse a exclusiva e determinante e precisasse a todo custo ser resolvida tal e qual, como bem diz a autora, comercial de margarina.
Deu, né, preguiça. A gente já não aguenta mais e, inclusive, a pauta do aborto, sempre presente: precisa acontecer. Temos que ter segurança e opção.
Devaneios finais e vamos conversar mais sobre o tema?
Preciso ser mãe? E se quiser, como fica a culpa? E eu filha - como me relaciono com a mãe que pôde ser minha mãe? E o conceito de maternidade solo, como se estrutura? Falando aqui do recorte feminino da questão materna, tão somente sobre este viés.
Não é feriado, não há de ser celebrado em todas as casas e vale o abraço em quem precise, queira ou apenas possa dar só porque algumas reflexões machucam ainda que a gente esteja afinzona de passar por elas.
Nosso combinado é fazer uma live conversando sobre o tema com a participação da audiência não somente ao vivo como também com perguntas enviadas aqui nos comentários. Podemos manter anônimas, sem problemas. Pretendemos falar mais sobre o dispositivo segundo o livro e um pouco sobre nossas próprias maternagens. Acompanhe a data no Instagram da marca. Nos vemos!
Comments