O processo de me tornar mulher com 160 pontos no tórax
Meu explante foi realizado há um ano e meio. É fevereiro de 2023, tenho 43 anos e estou passando por uma fase de experiências que têm exigido certo equilíbrio e profundidade constantes, dedicação e escolhas. É sensível contextualizar e contemporizar para ressaltar os sabores dessa história - que não é só minha: é esta faixa etária a responsável por grande parte das cirurgias de remoção de próteses de silicone e, claro, isso tem motivos maiores do que essa única versão.
Coloquei os peitos novos nos anos 2000 e, quem viveu sabe quem não viveu pode procurar no Netflix: Pamela Anderson estava com tudo em Malibu. Não, eu não assistia a série mas certamente fui impactada por aquele padrão que pipocava nos corredores da faculdade, nas tevês, nas capas das Playboys. Foi uma explosão da coisificação do corpo, o momento, e não consegui tempo necessário para me reformatar após a amamentação.
Pois é, fui mãe adolescente. Solo raiz. Sinto que deu certo, trabalho as culpas em terapia e não me arrependo de nada, exceto pelo silicone. “Você ficou muito feliz”, dizem as amigas, e me envergonho um pouquinho mais por ter sido levada pela onda. A onda, como suavizo para não cutucar - já cutucando -, é o sistema vigente que trata a vida de mulheres e crianças como menores, o patriarcado - o cuidado do pai. Silêncio.
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minha filha, eu e as próteses.
Não quero mergulhar nas profundezas que as informações dão conta, tem muita gente boa escrevendo e falando dos femininos e masculinos por aí. É fato que ser adolescente/mulher passando de 99 continha, mesmo que subjetivamente, o plano de ser entregue para o marido, como acontece com nossos documentos se a escolha pelo matrimônio é tradicional. Pense na pressão, ainda que interiorizada, para a mãe solteira. O exercício da posse sobre os corpos e seres femininos é secular, e até ali eu não me dava conta do que viria a experimentar por causa disso.
Era uma garota estúpida, posso provar. Relacionamentos abusivos, inúmeros, aos quais me dedicava sem parar. Gaslightin à milhão, medicação psiquiátrica pra dar conta do que já não podia mais conter e tem gente até aqui achando que o silicone me trouxe estima. Se situa, como tive que fazer: as próteses me deram o formato considerado ideal para mulheres na época, conceito que pouco tem a ver com a real consistência de bem-estar.
O tempo está passando, era incômodo. “Não acredito que você, uma pessoa que sempre se deu tão bem em relacionamentos, vai acabar sozinha” - escutei, passada, aos 32. Havia uma situação física com o ex, violenta, ainda em superação. Mas eu era difícil mesmo. Acabaria sozinha. Onze anos depois, nos tempos atuais, comentei com uma amiga que devemos substituir a expressão “the clock is ticking” por “alive and kicking”, tamanha oportunidade de aprendizado que temos nas últimas décadas. Haja libertação!
A colheita da burrice estética apareceu primeiro em forma de invisível que me tomou na sala de casa e deu o recado: precisa se cuidar, tem só uma bolinha, não é nada, é só tirar. Combinei algo meio frouxo comigo mesma e seguimos. Era o segundo semestre antes da pandemia e dali não enxergava os próximos meses. Foi tenso, tenso e diferente.
Qualquer questão que não fosse relacionada a sobreviver ao confinamento, higienizações oi e máscaras, além de contato restrito ao básico necessário, estava fora da lista de prioridades. A coisa se estendeu, ficou feíssima a situação da vacina no Brasil, a população foi atingida de forma genocida pela então presidência extrema direitista e foram muitos, muitos dias e muitos meses até que pudéssemos, bastante recentemente, passar um dia sem mortes pela Covid-19 no País.
Durante esse período, notei uma queda extraordinária de cabelos que foi rapidamente associada ao stress - quem não, não é mesmo? Fazia todo sentido e assim seguiu: maio, junho, julho, agosto, setembro… Até que, em dezembro, uma crise de pedras nos rins me abateu e, em resumo, via teleconsulta, o médico solicitou setenta e tantos exames para se certificar. Agendei para o próximo mês, expeli uma pedra no acostamento na volta pra casa e estava ávida pelo calendário vacinal, finalmente anunciado.
Passadas algumas semanas, os resultados estavam prontos e imprimi para levar ao médico, já presencial, na segunda-feira. Fui dando uma olhada como quem não quer nada, era muita coisa pra interpretar. Um marcador chamou bastante atenção, relacionado ao câncer de ovários, útero e tantos outros, bastante alterado. Google. Claro, que ideia brilhante. Os sintomas, claro, estavam todos lá. Escrevi pros homeopatas descrevendo o quadro. Aguarde avaliação do médico na consulta. Calma. Sem panicar geral.
Claro que em pânico, conversamos muito, durante a consulta, sobre as providências. “Cuidar da ansiedade”, no topo delas. Isso importa deixar escrito porquê no próximo e último capítulo, que vai de quando fui informada sobre os fatores que me afetavam clinicamente até ao desfecho da pergunta inicial sobre como manejo estes tempos em questões de ordem prática, físicas e emocionais, vou expor o conjunto de melhorias obtidas após a cirurgia e onde pesquisar por informações - fundamental para que toda a saga tenha sentido maior, especialmente no que diz respeito aos femininos aos quais devemos nos apropriar em caso de desejarmos retomar nossas saúdes múltiplas. Dá sim pra se livrar: ainda que tenha que abrir o peito, fazer uma baita limpeza e depois costurar. 160 pontos, pra ser exata.
“É uma bolinha. É só tirar.”
Tuaá, a caboclinha, em Junho de 2020
Assista nosso bate-papo para saber mais
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